O conjunto de leis organizado por Alfonso X, produzido entre os anos de 1250 e 1270, tem sido estudado sob muitos aspectos. Nos estudos filológico-literários, Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1896) e Ramón Menéndez Pidal (1942) fundamentaram nessas leis parte de suas opiniões a respeito da corte trovadoresca peninsular. Mais recentemente, Jesús Montoya Martínez (1991) e Benjamin Liu (2004) voltaram em particular a Las siete partidas, observando sua relação com a sátira. Neste projeto, discutiremos mais pontualmente essa relação, investigando o efeito de prescrição poética das leis afonsinas sobre o deostar e o jugar de palabras, base das cantigas de escárnio e maldizer.
Uma investigação com tal propósito implica no diálogo com, ao menos, quatro áreas do conhecimento: Literatura Peninsular Medieval, Filologia Românica, História do Direito e História das Mentalidades. Embora os estudos sobre a música (FERREIRA, 1986), a iconografia (MENÉNDEZ PIDAL, 1986) e a literatura oral (ZUMTHOR, 1993) esclareçam muito a produção trovadoresca, um dos pontos desta investigação, ative-me aos manuscritos e às suas lições. A abordagem textualista escolhida, ou seja, a que considera exclusivamente os recursos próprios do texto verbal das cantigas legadas por escrito, se por um lado reduz o escopo e o alcance deste trabalho, já que recorta e deixa de fora a perspectiva intersemiótica que lhe é peculiar, por outro, reduz mais os inegáveis riscos da discussão que proponho.
Um dos óbices mais sérios ao estudo crítico-literário da lírica galego-portuguesa é, sabe-se bem, a instabilidade textual dos manuscritos, sua “movência”, tanto das leis medievais peninsulares, do tratado poético, como dos cancioneiros em que se recolheram as cantigas. Isso exige que o pesquisador se ampare tanto na observação desses manuscritos, dos fac-símiles, como em suas edições críticas mais autorizadas.
Assim sendo, e em se tratando de fontes primárias peninsulares do século XIII e XIV, lançarei mão, no que concerne às leis afonsinas, da edição fac-similada de 1555, em que as Partidas são glosadas por Gregorio López (ALFONSO X, 2004), da edição-antologia anotada de Francisco López Estrada e María Teresa Lopez García-Berdoy (1992) e da tradução inglesa de Samuel Parsons Scott (2000). Em particular, será utilizada a edição da “Segunda Partida”, proposta por Aurora Juarez Blanquer e Antonio Rubio Flores (1991), para a discussão das leis que tocam de perto a questão proposta para este trabalho. O cotejo dessas edições – apenas para efeito de esclarecimento e não de posição filológica, alheia à minha perspectiva de estudos literários neste trabalho – será ainda mediado por glossários (LAPA, 1995) e dicionários especializados (VAN SCOY, 1986). Para a Arte de trovar, há duas edições críticas abalizadas: a de Jean-Marie D’Heur (1975) e de Giuseppe Tavani (1999). Além disso, cotejaremos essas edições com a tradução para o português moderno de Yara Frateschi Vieira (2003). No que diz respeito às cantigas satíricas, usaremos as duas edições desse corpus, a de Manoel Rodrigues Lapa (1995) e de Graça Videira Lopes (2002), que pretende corrigi-la e ampliá-la. Complementando esse cotejo, edições críticas individuais serão também consideradas.
Consideradas as lições das cantigas, do tratado poético e das leis que compõem o corpus deste trabalho, e observada a fortuna crítica dedicada à sátira galego-portuguesa, acompanharei mais estreitamente as pesquisas que consideram as relações entre esta produção, a poética (LIU, 1998/2004; MARIMÓN LLORCA, 1998) e a jurisprudência (MONTOYA MARTÍNEZ, 1989; M. MÉRIDA, 1993). Nesses estudos estarão presentes as discussões sobre recepção no período trovadoresco (JAUSS, 1970; TAVANI, 2000), aspecto teórico sensível aos problemas da motivação, da produção e da receptividade literária das cantigas.
Complementando essas considerações de ordem filológica e crítico-literária, e procurando o mais possível uma hermenêutica adequada aos estudos trovadorescos (BELTRÁN, 2001, p. 47), ponderarei ainda algumas análises provenientes da história do riso e da sátira (SCHOLBERG, 1971; CORTÉS, 1986; ALBERTI, 1999), dos estudos de Direito medieval peninsular (PALACIOS ALCAINE, 1991; OTERO, 1993-1994; O’CALLAGHAN, 2000; CRADDOCK, 2000), dos estudos de história das mentalidades (LE GOFF, 1998; MACEDO, 2000; MINOIS, 2003) e história de Alfonso X (BALLESTEROS BERETTA, 1984; D’AGOSTINO, 2001; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, 2004), visando identificar melhor as condições sociais, jurídicas e culturais que permearam o ambiente cortês galego-português, entre os séculos XIII e XIV, e sua relação com o conceito de risível ou cômico estabelecido ou sugerido nas cantigas, nas leis afonsinas e na Arte de trovar.